Transition 12 (1964)

FRANÇOIS BONDY: Quando tive o privilégio de conhecê-lo aqui em Paris, Jimmy, a oito ou nove anos atrás, você era um escritor, romancista e ensaísta norte-americano; e agora, lendo os jornais, olhando as capas de todas as grandes revistas, vejo que você surgiu como um grande líder Negro1. Como se sente a respeito disso: é uma nova vocação, um interlúdio na sua carreira de escritor, ou um tipo de chamado que era inescapável?
JAMES BALDWIN: É muito difícil responder. Decerto não sou um líder Negro. O que querem dizer quando falam “o problema do Negro”? Nunca soube de fato, mas o que quer que tivessem em mente os ultrapassou e então fui lançado como um tipo de figura pública pelas pressões internas da vida nos EUA. Isso é o mais angustiante para mim, para dizer a verdade, e não tem nada a ver comigo enquanto escritor. Não se pode falar em termos de preto e branco enquanto escritor, e tem de se evitar particularmente a crença de que as coisas são preto e branco. Sabe?
O que tento sugerir é que os termos em que as pessoas falam sobre o problema do Negro nada têm a ver com seres humanos. Parece haver na República Americana uma crença extraordinária de que Negros são ou santos ou demônios, de que a palavra “Negro” descreve alguma coisa — e ela não descreve. Não existe essa coisa de Negro, mas existe tal coisa de um garoto, ou um homem, ou uma mulher, que pode ser marrom, ou branco, ou verde, ou o que for; mas quando se diz “o problema do Negro”, cria-se um enorme, grande monólito, e por baixo dessa parede estão milhões de vidas de seres humanos sendo destruídas porque aqui se quer lidar com uma abstração.
FB: Dentro dos EUA, você sente que estamos vendo o começo de algum tipo de revolução profunda que mudará a situação da comunidade Negra?
JB: Acho que estamos no começo de uma profunda revolução que vai mudar não somente a comunidade Negra — vai mudar o país como um todo. Veja, não há possibilidade de libertar os Negros, a menos que se esteja preparado nos EUA para libertar os brancos.
FB: Libertá-los de quê?
JB: Dos seus horrores, das suas ignorâncias, dos seus preconceitos; e, por fim, do direito de errar sabendo que é errado. Os Brancos Sulistas, creio eu, são as pessoas mais vitimadas, mais tristes do mundo ocidental. Eles sabem que é errado — não se pode mandar avançar numa criança um cachorro sem saber que se está fazendo algo errado. Você tem de saber, ninguém deve negá-lo. Esse é um exemplo extremo do que quero dizer quando falo que essa revolução pode mudar a comunidade Americana mais do que a comunidade Negra, a relação do Americano com si próprio: Americanos transitando em vários níveis de tensão e terror, pensando o que é que os Negros farão a seguir, uma vez que eles é que o inventaram, especialmente. Sabe?
FB: Sim, entendo. Mas você escreveu que os Americanos não estão atrás dos europeus, e sim na frente; porque os americanos tiveram de encarar realmente o problema, enquanto nós europeus sentimos por vezes que temos soluções só porque não temos tal problema. Ainda acha que os americanos estão mais avançados nessa questão?
JB: Penso que é uma grande oportunidade que os EUA têm agora — o problema é a nossa oportunidade. O que eu tentava sugerir naquele trecho é que os americanos, por terem vivido isso por tanto tempo, conhecem o problema da cor mais que qualquer país europeu, porque a Europa nunca teve seus escravos na metrópole. Mas o preço do que se gostaria de chamar de vantagem americana seria uma investigação da própria história, o que os EUA nunca quiseram fazer. Se pudéssemos dizer a verdade a respeito do que aconteceu aos Índios2, do que aconteceu ao homem negro nos EUA, e fazer sumir todos aqueles mitos terríveis que estão aos montes na TV, nos livros e cadernos; se pudéssemos dizer a verdade a respeito da nossa verdadeira relação com os mexicanos, por exemplo, aí poderíamos começar a usar um tremendo potencial, e isso poderia salvar o mundo. O experimento americano, até onde sei, é sem precedentes na história mundial: é o único lugar no mundo onde várias pessoas se ajuntaram e criaram uma nação a partir do selvagem, e onde, a princípio, todas as construções da ordem social europeia não estavam presentes. E é um experimento que está ainda em grande perigo e em grande dúvida, pois parece difícil demais para um povo superar ou encarar seu verdadeiro passado.
Agora, é algo terrível demandar que uma civilização comece a examinar a si própria nestes termos; porém, se pudéssemos começar a examinar nós mesmos nestes termos, chegaríamos todos mais perto de um verdadeiro senso de identidade e seríamos muito menos ameaçados por negros Americanos, que têm um senso de si bem mais forte. Veja, ascensão social para um Negro Americano é coisa muito peculiar. Os termos com que o Negro a consegue são diferentes dos termos do Americano; são quase contrários aos termos do Americano. Nenhum Negro Americano jamais acreditou seriamente, nem por um instante, em quaisquer desses livros escritos por Horatio Alger Jr., mas os Americanos ainda acreditam. É nisso que vejo o real problema, a verdadeira crise, a questão de se vamos continuar vivendo num país inventado essencialmente pelo pânico e pela nostalgia, ou se vamos lidar com o que de fato aconteceu no país e está lá acontecendo agora.
FB: Um elemento que você tem tocado muito nos seus próprios livros é o erótico. Não acho que devemos ignorá-lo, já que conversamos agora.
JB: Bem, não podemos ignorá-lo, mas não podemos esclarecê-lo de todo, também. É muito estranho. O homem negro representa para um Americano uma ameaça pessoal, emocional, sexual, psicológica. Penso que é uma das penalidades para o poder que o homem branco Americano por tanto tempo exerceu sobre a carne negra. Esse tipo de licença é sempre brutal, faz coisas terríveis ao objeto, e faz coisas medonhas a quem o perpetra. Mas é claro que até eu, que sou bem escuro, não sou tão escuro quanto um Africano, e não é porque minha avó saiu por aí estuprando gente. Ela é quem foi estuprada. O crucial aqui é que isso é um fato não admitido na vida Americana: os Americanos não estão preparados para aceitar o que fizeram e o que fazem — aceitar o fato de que a gente que eles chamam de Negros são também seus irmãos, e seus primos, e seus tios, e suas irmãs.
O homem branco, que tem podido fazer, por tanto tempo, o que bem quiser com a mulher Negra, inventou todo esse conceito de manter-me longe da cama da mulher branca, porque sente medo da minha retaliação. Há nisso algo muito estranho, até suicida: se você sai por aí dizendo às mulheres para ficarem longe de mim porque sou sexualmente mais potente, e você ao mesmo tempo está noutro canto da cidade com todas as garotas negras que consegue achar, ou se você simplesmente sonhou com elas, então você não está cuidando da sua esposa. Você mesmo está envolvido em carne negra até o pescoço, e cedo ou tarde o que houve no Sul tinha de acontecer: alguma mulher branca histérica, histérica por abandono ou por desejo, grita “Estupro!” quando me vê. Todo o vazio dela é projetado em mim, porque o homem branco a assegurou de que sou melhor que ele na cama. Parece algo curioso a se fazer a si próprio, especialmente porque não é verdade; envolve uma noção infantil, peculiar, de sexo.
Dizemos, grosseiramente: “Não é o tamanho, é o jeito”. Expressão rude, mas não imprecisa. Se você não sabe fazer amor — e fazer amor é bem mais que um ato físico —, o tamanho do seu membro não importa. O que houve aqui foi que o homem branco americano se enclausurou num tipo estranho de competição adolescente: “Aposto que o meu é maior que o seu”, e é o Negro quem paga por essa fantasia. Deve correr algo estranho pela mente de qualquer um que tenha de castrar outro homem. E isso é de uma complexidade, de um horror, que não podemos esperar sequer esclarecê-lo numa discussão; na verdade, levaria anos para descobrir como se vai escrever isso, se você ousa pensar que consegue. Mas é de fato, creio, o aspecto mais terrível do que chamaremos aqui de o problema do homem branco. Deve ser aterrorizante andar pelo mundo supondo que todo homem negro que você vê pode tomar sua mulher de você…
FB: Enquanto escritor, você tem de dizer algo novo, ao passo que, enquanto orador, enquanto homem que traz à tona esses problemas, é inevitável dizer coisas que antes já foram ditas e que terão de ser repetidas novamente, porque é assim que o progresso social e político funciona. Que problema isso levanta para você pessoalmente?
JB: Cria-se um grande problema, porque o meu interesse nas pessoas não existe de fato nesse nível público. Eu me sinto terrivelmente ameaçado por essa notoriedade presente, porque é contrária ao tipo de esforço que precisa ocorrer em silêncio e por longo tempo, e que é por definição extremamente perigoso, porque tem de se esmiuçar todas as definições existentes. Gostaria de escrever coisas muito diferentes das que escrevi e ir ainda mais adiante do que tenho ido até então. E estou certo de que se eu viver, eu irei. Mas é realmente um tipo curiosíssimo de dicotomia, ou, mais simplesmente, é difícil manter a mente e o olhar no que sabemos ser complexo e que todo o mundo quer tornar simples; difícil fixar-se no que sabemos ser a verdade que jaz por baixo e tentar alcançar uma nova e mais verdadeira simplicidade. É uma questão de fôlego, e rezo para que eu tenha fôlego o bastante.
Tradução: Miguel Fernandes.
Quando da publicação desta tradução, Wanderson Chaves, autor do livro A Questão Negra, fez uma intervenção em meu Instagram indagando a respeito da revista Transition, onde se publicou essa entrevista. Conversamos um pouco sobre a complexidade política envolvendo o local de publicação. Posto que a densidade do assunto não pode ser resumida numa só nota de rodapé, transcrevo a conversa com Wanderson, citando as fontes, e deixo o aprofundamento a cargo do leitor: — “Era uma revista do CCF, uma frente da CIA. Como, aliás, quase uma centena de outras nessa época. A disputa pela formação e pela influência sobre os intelectuais era intensa.” — “Ela tinha uma atuação como que de ‘dispersão’ de movimentos contra-hegemônicos, algo assim?” — “Acho que era mais de arregimentação, de reorientação, que de dissolução. Mas é caso a caso quanto ao que se queira em cada lugar […] A minha observação era sobre o sistema de publicações que em níveis globais era definido por disputas de Guerra Fria, geralmente secretas […] Uma introdução pode ser vista em Quem pagou a conta? [The Cultural Cold War], de Frances Stonor Saunders, um livro já antigo, de 1999, mas que introduz o tema. Pense se é relevante [adicionar a informação a respeito da Transition], porque seria preciso explicar a revista e falar em que medida era importante para essa revista ter o Baldwin lá […] Não é uma questão de interferência direta, pois geralmente não funciona assim. É uma questão de qual é o projeto editorial da publicação e por que Baldwin e seu prestígio eram importantes para ela. Estou dizendo tudo isso porque apenas jogar que havia apoio da CIA para a revista sem maiores explicações pode levar seu leitor a achar, por indução, que o próprio Baldwin era da CIA. É necessário dar muito contexto, e, acredito, o seu foco são as palavras do Baldwin, não a própria revista”. O livro mencionado por Wanderson a respeito da CCF, especificamente, foi African Literature and the CIA: Networks of Authorship and Publishing, de Caroline Davis. [Nota do tradutor]
Optou-se pela tradução “Índios” para melhor corresponder ao termo “Indian” usado na entrevista original em seu determinado contexto. [N. do T.]